O árbitro de vídeo mandou chamar. É que em Mato Grosso, mais de 1 milhão de hectares inscritos como propriedades ou posses rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR) estão sobrepostos a territórios indígenas. Ou seja: é o típico lance de jogo que precisa ser anulado. O dado está no relatório “O CAR como instrumento de grilagem”, publicado nesta quinta-feira (3) pela Operação Amazônia Nativa (Opan), em parceria com o Instituto Centro de Vida (ICV).
O CAR é um registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais. Em sua descrição, é dito que tem a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo uma base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. A inscrição do imóvel deve ser feita no órgão ambiental do estado onde ele está localizado.
Quase metade dos imóveis sobrepostos a terras indígenas e inscritos no CAR são grandes propriedades, somando mais de 900 mil hectares
O relatório mostra que cerca de 82% dos cadastros em terras indígenas de Mato Grosso estão ativos, ou seja, aguardam análise ou estão em alguma fase do processo de validação. Em contrapartida, apenas 13% dos cadastros foram cancelados e 5% indeferidos, o que equivale a uma área de pouco mais de 130 mil hectares. “Esse cenário contraria a IN 02/2014 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que afirma que a situação do CAR deve constar como pendente quando estiver em sobreposição com terras indígenas”, diz o documento.
A maioria dos imóveis sobrepostos a terras indígenas e inscritos no CAR são grandes propriedades (47%), somando mais de 900 mil hectares. Ao menos 25% são médios e 28% de pequeno porte.
A leniência da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT), responsável pelos cadastros, favorece conflitos fundiários. “Na prática, os titulares, ao registrarem o CAR, ganham um amparo para fazer a grilagem de uma terra”, diz o relatório. “A conivência em receber os registros de CAR nas terras indígenas e promover a sua validação em áreas destinadas ao usufruto exclusivo dos povos indígenas é agir à revelia da Constituição Federal e das convenções e tratados internacionais que reconhecem os direitos originários desses povos às suas terras”, completa.
Os territórios indígenas também ficam mais suscetíveis ao desmatamento. A análise aponta que o desmatamento dentro de imóveis registrados no CAR atingiu 3,8 mil hectares entre 2009 e 2023, em Mato Grosso. Mais de 30% desse desmatamento se concentrou em territórios indígenas delimitados.
O relatório detalha os casos de terras indígenas com mais de 45% de suas áreas sobrepostas pelo CAR: Batelão, Manoki e Menkü.
A Batelão, do povo kayabi, tem 117 mil hectares, sendo que 85% (99,8 mil hectares) da área está sobreposta a imóveis rurais. Em 2020, um relatório técnico mostrou sobreposição em 47,3 mil hectares. Como os dados analisados vão até 2023, houve um aumento de 110% em apenas três anos. Entre 2009 e 2023, a Batelão acumulou 59 hectares desmatados, sendo 53% só em 2023. Do total, 88% do desmatamento ocorreu em áreas com requerimento de CAR.
A Terra Indígena Manoki, dos iranxe-manoki, possui uma área de 205,9 mil hectares, com 48% (98,2 mil) do território sobreposto. Em 2020, eram 45%. Entre 2009 e 2023, 5,3 mil hectares foram desmatados, com 27% do desmatamento concentrado em 2020. Do total, 8,6% ocorreu em áreas com requerimento de CAR.
A Terra Indígena Menkü, dos menkü-manoki, abrange uma área de 146 mil hectares, com sobreposição de imóveis rurais atingindo 79,6% da área total (116,2 mil hectares). Em 2020, a sobreposição era de 67%. Entre 2009 e 2023, 1,8 mil hectares foram desmatados, sendo que 33% ocorreram em áreas com CAR.
A Opan lembra que, em 2021, começou a tramitar no Ministério Público Federal (MPF) um Procedimento Preparatório que aponta um grande número de registros no CAR de imóveis rurais sobrepostos a territórios indígenas em Mato Grosso. Em 2022, o procedimento passou a tramitar como inquérito civil. Foi expedida a recomendação para que a Sema-MT alterasse todos os registros de CAR sobrepostos a terras indígenas, independentemente da fase do procedimento declaratório, para as categorias suspensas ou canceladas. No entanto, a secretaria se comprometeu a seguir a recomendação excluindo as terras indígenas sem portaria declaratória, em estudo ou delimitadas.
O impasse fez com que o MPF ajuizasse uma Ação Civil Pública contra o estado de Mato Grosso. Em março deste ano, o governo estadual publicou um decreto para alterar a forma de análise do CAR. Segundo a Opan, não houve nenhuma modificação no critério adotado pela Sema-MT em relação aos cadastros sobrepostos a terras indígenas.
O Observatório do Clima solicitou um posicionamento da Sema, mas não obteve retorno. (PRISCILA PACHECO)