Uma de minhas leituras favoritas de 2024 foi uma novela de humor negro chamada Venomous Lumpsucker, escrita pelo genial nerd inglês Ned Beauman. O livro narra as aventuras de dois rivais que precisam se unir para encontrar a última população de um peixe ameaçado, viajando por uma Europa distópica num futuro não muito distante.

A mudança do clima não é tema central da história, mas fica claro desde o início do livro que ela é o pano de fundo. Extinções em massa (com bilionários tratando de lucrar com elas), paisagens remodeladas, novas doenças. Mas o que me pegou mesmo no livro foi a caracterização que Beauman faz da comida no futuro: por conta do novo clima, os alimentos simplesmente perdem o sabor, e o ato de comer se torna uma necessidade fisiológica e não um prazer. Obviamente nem todo mundo se conforma com isso: Halyard, um dos protagonistas, passa a viver em função de conseguir o luxo inimaginável de um carpaccio, um uísque ou um pedaço de atum – bens de consumo reservados apenas aos muito, muito ricos – e comete corrupções em série para isso. 

O preço do azeite é consequência da crise do clima. Em 2023, o mundo teve o verão setentrional mais quente da história (e o mais fresco das próximas décadas), com a primeira ultrapassagem do limite de aquecimento de 1,5ºC em julho

Essa história tem vindo à minha cabeça todas as vezes que faço menção de comprar (e depois desisto) uma garrafa de azeite no supermercado nos últimos meses. Na minha casa (branca, de classe média, privilegiada), baixou-se um AI-5 informal sobre cozinhar com óleo de oliva. Adaptamos algumas receitas, cortamos outras, misturamos com óleo de soja. Azeite agora tem que durar. Meio brincando e meio falando sério, pedi de presente de Dia dos Pais no ano passado um bolo que leva azeite na massa.

A culpa da disparada no preço do óleo de oliva é da crise do clima. Em 2023, o mundo teve o verão setentrional mais quente da história (e o mais fresco das próximas décadas), com a primeira ultrapassagem do limite de aquecimento global de 1,5oC em julho. A região do Mediterrâneo, que produz a maior parte do azeite do mundo, foi especialmente impactada, e a Espanha, maior produtora, teve uma quebra de safra de azeitonas maciça. Isso impactou o preço do azeite no mundo todo; no Brasil, uma garrafa de meio litro que custava R$ 18 no começo de 2022 não sai hoje por menos de R$ 40 (dados inteiramente empíricos de gôndola de supermercado do Instituto DataClaudio). 

Pode até ser que, depois do massacre do El Niño de 2023 e de mais um ano de calor recorde em 2024, a La Niña deste ano permita alguma recuperação da produção europeia. Mas os verões no Mediterrâneo estão cada vez mais secos e mais quentes; portanto, a tendência é que a produtividade das oliveiras seja cada vez menor. E o limite de adaptação da cultura é pequeno, já que são árvores grandes, que levam anos para produzir e que, em algumas regiões, têm séculos de idade. Não é que nem pé de soja, que você replanta todo ano. Há uma chance boa de que os R$ 40 do azeite sejam piso e não teto. 

SOBE A TEMPERATURA, SOBE O IPCA

Se você acha isso mimimi de gente rica, olhe o IPCA de 2024. A inflação de 4,83% no ano passado estourou o teto da meta, e os principais responsáveis, além da gasolina, foram os alimentos, que subiram 7,69%. O café, que no Brasil é gênero de primeira necessidade (e pelo qual eu trocaria todo o azeite do mundo, se tivesse de escolher), subiu 40% no ano passado, na esteira da pior seca já registrada no país. Atire a primeira xícara quem não tem uma mini-síncope na prateleira ao ver o pacote de meio quilo que dois anos atrás custava menos de R$ 10 ultrapassar os R$ 20.

Até o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que não pode ser acusado de ambientalista, responsabilizou as enchentes e estiagens extremas do ano por grande parte da variação do preço da comida. A situação não foi pior porque a maioria do arroz no Rio Grande do Sul, maior produtor do país, já havia sido colhida quando o estado ficou debaixo d’água em maio. Daremos a mesma sorte neste ano? E no próximo? E nos seguintes? Qual é a próxima região agrícola do Brasil ou do mundo a ser arrasada por eventos climáticos extremos que afetam o preço dos alimentos?

A agropecuária é um setor que sempre esteve na linha de frente do clima, e sempre se adaptou. O trabalho de centros de pesquisa agrícola como a Embrapa e o CGIAR (Grupo Consultivo em Pesquisa Agrícola Internacional, berço da Revolução Verde), passa por desenvolver cultivares mais resistentes a seca, chuva e pragas. A velocidade e a intensidade da mudança do clima atual, porém, desafiam os limites de adaptação das lavouras. Chega um momento em que as oliveiras não conseguem produzir mais, que o sul da França fica imprestável para vinho e a florada do café não aguenta mais o calor nem nos lugares mais altos da Mantiqueira. 

Para citar apenas um caso, em 2021 minha amiga Ludmila Rattis, pesquisadora do Ipam, mostrou que quase 30% da região produtora de soja e milho em Mato Grosso já está fora dos padrões climáticos para os quais as sementes hoje plantadas na região foram desenvolvidas. Esse percentual pode chegar a quase 75% em 2060. Isso significa cada vez menos produtividade e mais chance de quebra de safra.

O famoso estudo Brasil 2040, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, mapeou impactos de um clima mais quente para algumas culturas. A perda de área agricultável de soja foi estimada em até 39%; feijão e arroz, 26% e 24%, respectivamente. Isso em 15 anos. A mandioca sai do Nordeste para o Centro-Oeste e a Amazônia; o feijão-de-corda já está migrando do Nordeste para o Centro-Oeste, como frequentadores de feira em Brasília sabem bem.

Uma das poucas vencedoras nesse mundo de alimentos derrotados é a cana-de-açúcar, que se beneficia do efeito duplo do calor e da fertilização pelo CO2 extra na atmosfera e deve ver sua área agricultável crescer, segundo o Brasil 2040. O sucesso da cana, porém, pode se dever a algo que é sintoma de uma potencial tragédia de enormes proporções no futuro. 

COLAPSO DOS NUTRIENTES

O americano David Wallace-Wells, em seu apavorante best-seller A Terra Inabitável (2019), escreveu que, para cada grau de aquecimento global, a produção de cereais declina 10%. O CO2 adicional no ar poderia ajudar a equilibrar esse declínio, já que em tese é um alimento para as plantas. Mas não é assim que funciona: Wallace-Wells relata pesquisas que mostram que a fertilização de CO2 aumenta a quantidade de carboidratos fixados pelas plantas, mas essas plantas maiores e de folhas mais grossas têm menos nutrientes e menos proteínas. Isso já está acontecendo com o arroz, base da dieta de pelo menos 2 bilhões de pessoas no mundo. O chamado “colapso de nutrientes” ameaça causar deficiência proteica em 150 milhões de pessoas apenas no mundo desenvolvido até 2050; no Sul Global esse índice será muito maior. Numa tempestade perfeita, teremos menos produção, comida mais cara e menos nutritiva. Aos poucos vai-se desenhando o cenário imaginado na ficção de Ned Beauman.

Com um agravante que começa a se fazer notar: a insatisfação social que a comida cara produz e seus efeitos políticos. Nos Estados Unidos, a melhora econômica vivida na administração de Joe Biden, com empregos e PIB em alta, falhou em percolar para a classe trabalhadora, que precisou conviver com preços altos de comida, transporte e aluguel nos quatro anos de mandato do democrata. A insatisfação com o bolso (aliada a uma dose de manipulação da informação que um dia ainda será conhecida) foi um dos fatores que levaram os americanos a eleger um criminoso condenado para ocupar a Casa Branca pela primeira vez na história.

No Brasil, que tem uma proporção maior do que os EUA de gente cujo orçamento familiar é mais impactado pela alimentação, a inflação do consumo tende a ter um peso eleitoral ainda maior. E quem captura melhor do que ninguém a insatisfação popular para transformá-la em arma política, você adivinhou, são os populistas de direita. E aqui vem o componente particularmente cruel desse cenário: populistas de direita também são os oponentes mais ferrenhos da ação climática.

A leitora já sacou o tamanho do buraco: a crise do clima deixa a comida mais cara e mais gente com fome; pessoas com fome e insatisfeitas (nos países que ainda usam essa instituição démodé chamada democracia) dão o troco nos políticos nas urnas; quem assume o poder é a extrema-direita, que reduz as medidas de adaptação e de corte de emissões, agravando a crise climática e deixando as pessoas mais pobres e mais famintas. Repita.

E não adianta nem dizer que você vai beber para esquecer, porque a cerveja e o vinho também estão em risco, já que a uva e o lúpulo dependem de condições frias em parte do ano e isso está cada vez mais raro nas regiões produtoras.

Eu, de minha parte, ainda não estou disposto a cometer nenhum crime e nem aceitar suborno em troca de uma garrafa de azeite, como o personagem de Beauman. Mas já aviso que o dia em que o pacote de café chegar a R$ 40 eu não respondo por mim.