As energias renováveis são uma grande promessa do Brasil para alcançar suas metas climáticas, mas a estratégia para marcar esses gols é flexibilizar as regras socioambientais para atrair investimentos no setor, o que desequilibra ainda mais o jogo da justiça climática e social.

No país, essa disputa, que já está em andamento, favorece os times grandes – empresas e investidores –, e marginaliza os times pequenos – as comunidades locais e povos tradicionais. Os exemplos internacionais atestam que o avanço acelerado das energias renováveis, embora crucial no combate às mudanças climáticas, frequentemente vem acompanhado de violações de direitos.

Uma transição justa não se mede só por megawatts instalados, mas por quantas vidas são melhoradas com ecossistemas equilibrados

No Nordeste, epicentro da energia eólica, os ventos fortes atraíram centenas de projetos apoiados pelo governo federal e dos estados, mas nem todos têm jogado limpo, pois junto com as turbinas também vieram conflitos em razão dos impactos socioambientais sofridos pelas comunidades do entorno. 

A Bahia, por exemplo, responde por cerca de 33% da geração eólica nacional e ao menos 11 municípios registram disputas entre moradores e empresas. Em muitos casos, as companhias aproveitam a frágil governança fundiária da região e instalam aerogeradores em áreas ocupadas por comunidades locais, sem diálogo ou consulta livre, prévia e informada (CLPI), direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Após a chegada de complexos eólicos, as promessas de desenvolvimento raramente se concretizam. Em vez disso, a população local sofre impactos negativos. Em Pernambuco, turbinas instaladas a apenas 150 metros das casas geram ruído constante, poeira e problemas de saúde. Moradores relatam que o som trazido pelas turbinas é como o de “um avião voando baixo permanentemente”. A exposição prolongada ao barulho, a poeira e as vibrações provocam insônia, ansiedade e perda auditiva, e ainda agravam doenças respiratórias e causam fissuras nas paredes. 

O caso do quilombo de Cumbe, no Ceará, ilustra como a energia “limpa” pode se traduzir em deterioração da saúde e das condições de vida das comunidades. Um dos maiores parques eólicos do país foi instalado em 2008 e a comunidade perdeu áreas de pesca artesanal, teve o seu cemitério tradicional cercado por turbinas e viu seu modo de vida sendo continuamente afetado

Apesar de conviverem com turbinas em suas terras e linhas de transmissão sobre suas cabeças, os quilombolas não obtiveram benefícios da eletricidade gerada e continuam sem poder pagar pela energia para refrigerar o peixe que coletam. Reportagens e investigações acadêmicas já alertaram que o Brasil corre o risco de ficar em impedimento na transição energética, pois casos como o de Cumbe demonstram como as energias renováveis avançam violando os direitos humanos.

Eólicas offshore

Foi aprovado, neste ano, o marco legal para parques eólicos marítimos, por meio da Lei nº 15097/2025 – o Brasil tem um potencial estimado de 1.200 GW em energia eólica offshore. Mas as regras do fair play ambiental, social e climático precisam ser respeitadas. 

Um estudo realizado na Universidade Federal do Ceará (UFC) revela que os 26 projetos propostos se sobrepõem a zonas de pesca usadas por mais de 340 comunidades costeiras. Os pescadores já expressam receio, pois as turbinas podem alterar ventos, correntes e rotas das jangadas, afastando peixes e ameaçando meios de subsistência. Sem estudos sólidos e participação das comunidades pesqueiras no planejamento, o Brasil avança sem as devidas precauções e pode cometer no oceano as mesmas faltas praticadas em terra firme.

Além da incerteza científica sobre os impactos nos ecossistemas marinhos e da ausência de um planejamento espacial participativo para definir zonas de exclusão, proteger áreas sensíveis e evitar conflitos, não há experiência prévia com parques eólicos offshore operando na região. 

Diversos movimentos sociais, especialistas e até mesmo órgãos oficiais propuseram medidas concretas para alcançar uma transição justa e responsável. Como, por exemplo,  garantir o direito dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais de serem consultados antes da proposição de qualquer empreendimento eólico em seus territórios e maretórios. Além disso, o licenciamento ambiental precisa considerar impactos cumulativos sobre água, terra e comunidades. As avaliações precisam ser estratégicas e interculturais, incluindo a escuta das populações afetadas e priorizando áreas já degradadas.

A energia do vento só vale a pena quando garante benefícios locais: tarifas reduzidas, fundos comunitários, infraestrutura e oportunidades de trabalho. Concomitantemente, é preciso vigiar os novos jogadores, como os data centers e outros grandes consumidores de energia que chegam ao Nordeste atraídos pela eletricidade “limpa”. O caso do TikTok, no Ceará, mostra o risco de desequilíbrio: alto consumo de água e energia, e pouca transparência sobre contrapartidas.

O Brasil tem recursos e compromissos climáticos para ser campeão da transição energética. Porém, o país precisa revisar seu modelo energético para alinhar políticas ambientais, sociais e econômicas de forma coerente. A transição energética precisa garantir que todos joguem com as mesmas regras, com transparência, participação e respeito aos direitos humanos. O futuro climático brasileiro depende de quem está na linha de frente: comunidades rurais, quilombolas, pescadores e povos indígenas que sustentam os territórios e maretórios há gerações. Uma transição justa não se mede apenas por megawatts instalados, mas por quantas vidas são melhoradas e quantos ecossistemas permanecem ecologicamente equilibrados. Se o Brasil quiser realmente vencer o campeonato climático, terá que garantir o fair play energético, em que desenvolvimento e justiça social joguem no mesmo time. (Sebastian Abad Jara)