O mundo vive um impasse: enquanto os impactos da crise climática se intensificam, os recursos prometidos para enfrentá-la continuam presos em estruturas burocráticas, distantes da realidade de quem protege a vida no território. Décadas após a criação dos primeiros mecanismos internacionais, a governança do financiamento climático segue marcada por relações coloniais, pela intermediação de bancos multilaterais e por um modelo baseado no controle e na desconfiança sobre povos e comunidades tradicionais.
Hoje, acessar recursos climáticos é uma corrida de obstáculos: formulários em idiomas estrangeiros, exigências contábeis incompatíveis com a realidade local, intermediários caros. O resultado é perverso: o dinheiro se concentra em grandes executores e quem cuida do território recebe migalhas. Dois fundos em atual discussão na agenda climática nacional e global, o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (Tropical Forests Forever Facility – TFFF) e o Fundo de Perdas e Danos (Fund for Responding to Loss and Damage – FRLD), atraem atenção crescente e evidenciam esse desafio.
O grupo defende que a proposta do TFFF, que prevê 20% dos recursos para povos indígenas e comunidades, deveria ser ampliada para 50%
O TFFF, que deve ser lançado durante a COP30, em Belém, propõe um fundo global permanente para remunerar países que mantêm suas florestas tropicais vivas e conservadas. Liderado pelo Brasil, o mecanismo quer reunir recursos públicos (governos e filantropia) e privados (mercado financeiro). A meta é alcançar US$ 125 bilhões no longo prazo, com repasses anuais baseados em indicadores como área de floresta preservada e, possivelmente, restauração florestal.
O FRLD, por sua vez, foi operacionalizado após a COP28, com o Banco Mundial como gestor interino. Embora tenha recebido promessas de aporte superiores a US$ 700 milhões, as decisões e documentos do Conselho até agora tratam de regras de funcionamento, orçamento administrativo e arranque operacional, mas não definiram critérios de destinação por público, nem modalidades de acesso claras.
No Brasil, os responsáveis por manter a floresta em pé são os territórios indígenas, as comunidades tradicionais e as Unidades de Conservação (UCs). Segundo o MapBiomas, dois terços das Terras Indígenas (TIs) não registraram nenhum evento de desmatamento em 2024, e a perda somada equivale a apenas 1,3% do total desmatado no país, um sinal claro de efetividade, mesmo sob forte pressão. Isso não é um caso pontual. Entre 1985 e 2023, TIs perderam apenas 1% da vegetação nativa, enquanto terras privadas perderam 28%. Não por acaso, as TIs concentram cerca de 19,5% da vegetação nativa brasileira, um patrimônio vivo guardado por quem mais protege. Estudos também mostram que a criação de novas UCs foi responsável por 37% da queda do desmatamento entre 2004 e 2006. Ou seja, quando o país expande, consolida e demarca TIs e UCs, o desmatamento cai.
Nas últimas conferências do clima, o mundo repetiu compromissos, mas falhou no essencial: colocar os verdadeiros guardiões dos territórios no centro das decisões e dos recursos. Povos indígenas e comunidades tradicionais protegem florestas, rios e saberes que mantêm o clima estável. Por isso nós, da Aliança dos Povos pelo Clima, articulação que reúne lideranças indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhas e juventudes, propomos um financiamento climático justo, direto e acessível, baseado na confiança e na corresponsabilidade. Defendemos que os fundos e mecanismos de financiamento, públicos e privados, adotem regras simplificadas, prestação de contas adaptada e assistência técnica gratuita para a elaboração de projetos.
Também é fundamental garantir governança representativa, com assentos deliberativos para associações comunitárias, consórcios de organizações de base, cooperativas tradicionais, coletivos e movimentos sociais nos conselhos do TFFF e do FRLD. A participação direta é a única forma de garantir transparência, controle social e justiça na distribuição dos recursos.
É preciso garantir que quem contribui de forma efetiva com a conservação e preservação das florestas em pé seja também o principal beneficiário do financiamento climático. A proposta atual do TFFF, que prevê apenas 20% dos recursos para os povos indígenas e comunidades tradicionais, é insuficiente. Defendemos ampliar essa destinação para 50%, financiando iniciativas e projetos que já atuam cotidianamente para um presente e futuro sustentável.
Precisamos adotar uma metodologia de governança dos fundos que dialogue com as realidades locais, reconhecendo redes e fundos comunitários autônomos, como a Comuá e o Fundo Casa Socioambiental. Esses mecanismos já operam com legitimidade e flexibilidade em escala territorial, comprovando que confiança é o novo critério de eficiência. Essas experiências apontam o caminho para romper com a colonização financeira e construir uma nova arquitetura, em que os povos da floresta sejam reconhecidos como sujeitos de direito e não como beneficiários passivos. A nós não falta capacidade, o que falta é acesso. E financiar as comunidades dos territórios não é favor, é a forma mais efetiva de manter o carbono no solo, a água limpa, garantir a resiliência e proteção das pessoas e a floresta em pé.
A fonte de financiamento também precisa ser diversa e justa. A Aliança defende o estabelecimento de uma taxa fiscal global sobre lucros excessivos de grandes corporações e de até 5% sobre multimilionários e bilionários, como instrumento de justiça fiscal e climática. Levantamento da Oxfam mostra que o 1% mais rico do planeta emite mais carbono do que 6 bilhões de pessoas mais pobres. É hora de inverter a equação: os culpados pela crise devem ser os responsáveis pela conta.
O futuro da Amazônia, do mundo e de seus povos depende de uma virada radical na forma como os recursos são distribuídos e as decisões são tomadas. A Aliança dos Povos pelo Clima cobra participação popular e financiamento direto, desburocratizado e justo. Sem financiar quem protege, não há clima que resista. (Ana Rosa Cyrus, do Engajamundo; Joelmir Silva, do Coletivo Olhos do Xingu; e Walter Oliveira, do Tapajós)