Hat-trick é uma expressão utilizada no futebol quando um jogador ou jogadora faz três gols em uma só partida. Um fato tão difícil de ocorrer que nem sequer existe tradução para o português. Quer dizer, existe: se chama “pedir música no Fantástico”.
E por que falamos disso? Porque o nosso planeta precisa, agora, de um hat-trick. Transição energética por si só não basta. Fim do desmatamento por si só também não basta. É preciso que a humanidade faça ao menos três gols para salvar as formas de vida nos próximos anos. Ainda é possível vencer a partida, mas apenas se o time – que no caso, é a seleção de todos os jogadores e jogadoras do planeta – fizer uma partida de gala, daquelas de tirar o fôlego de quem vê.
O fair play só pode ser o seguinte: os países e empresários mais ricos que paguem a conta, caso contrário ela não fecha
Como virar o jogo contra as mudanças climáticas?
Em 2000, na final da saudosa Copa Mercosul, Palmeiras e Vasco fizeram um jogo de gigantes. Eram os principais times masculinos brasileiros da época. Os grandes títulos do fim dos anos 1990 e início dos 2000 ficaram entre eles. Neste embate, se enfrentariam diretamente para decidir quem era o melhor.
O Palmeiras começou o jogo vencendo já por 3 a 0. Um massacre – mais ou menos o que a transformação do clima está fazendo com a vida no planeta. Depois da humanidade poluir muito, destruir muito, desmatar muito, queimar muito, a natureza mostrou os efeitos práticos da nossa falta de esquema tático: a goleada, que vem com eventos climáticos cada vez extremos (e comuns), como ondas de calor, enchentes, furacões, tornados, tsunamis.
Todo jogo tem um fim. Para os cientistas, o fim para uma boa parte da humanidade e outras formas de vida, vai se concretizar se ultrapassarmos em 1,5ºC a temperatura ideal para a vida na Terra. Parece pouco, mas não é. Com mais 1,5ºC, os lugares que são quentes vão ficar mais quentes, os lugares que são frios vão ficar mais frios, as geleiras vão se derreter, o El Nino ficará mais forte do que ele já é, novos vírus e bactérias que estavam congelados serão liberados e uma reação em cadeia gigantesca transformará nossas vidas em um campo minado.
O jogo está difícil, estamos perdendo por 3 a 0, mas a virada ainda pode acontecer – e ela começa com um hat-trick para empatar o jogo.
1º gol: Economia Redistributiva
A craque precisa entrar em campo. Sem uma jogada de mestre, virar esse jogo é impossível. E, por isso, o primeiro gol tem que ser em cima dela, da economia. Vivemos em um mundo extremamente desigual, onde existem pouco menos de três mil bilionários para centenas de milhões de pessoas que vivem com salários de miséria.
Um exemplo dessa concentração absurda de renda é o Brasil. Um único bilionário tem a renda dos 107 milhões de brasileiros mais pobres. Uma única pessoa tem mais dinheiro que metade do país. Enquanto isso continuar a existir, não será possível vencer a partida.
As mudanças do clima envolvem mais que os aspectos ambientais. Para realizar uma transformação efetiva, as economias interna e externa têm que entrar no jogo. Os países ditos desenvolvidos poluem livremente e fazem com que os seus bilionários fiquem ainda mais ricos. Enquanto isso, os mais pobres, que são os que menos poluem e os que menos produzem riqueza, continuam a empobrecer.
O fair play só pode ser o seguinte: os países e empresários mais ricos que paguem essa conta, caso contrário ela não fecha. É preciso redistribuir o dinheiro das nações mais ricas para as mais pobres. É preciso taxar grandes fortunas e redistribuir a renda para que os mais pobres não sejam as principais vítimas do colapso climático criado pelos bilionários. (E não estamos indo bem, visto que a nossa Câmara dos Deputados barrou um projeto de taxação de grandes fortunas na semana passada).
Enquanto a economia do planeta não for menos desigual, este jogo vai continuar 3 a 0 para as mudanças do clima.
2º gol: Justiça Social
Parece que a nossa craque está inspirada e já foi atrás de balançar as redes mais uma vez. Agora com o golaço da justiça social. De nada adianta redistribuir o dinheiro de forma a acabar ou, pelo menos, minimizar a desigualdade de renda da população sem pensar em formas de fazer com que as pessoas mais pobres tenham acesso aos direitos sociais.
Direitos sociais são aqueles básicos que todo mundo precisa para ter uma vida digna e confortável: alimentação balanceada e adequada, uma moradia segura e confortável, saúde e educação gratuitas e de qualidade, além de acesso fácil e saudável ao esporte, lazer, cultura e transporte, por exemplo.
Esse gol fica ainda mais bonito quando a gente coloca as populações que historicamente são vulnerabilizadas como protagonistas da vitória. Isso significa que pessoas negras (pretas e pardas), ribeirinhos, indígenas, quilombolas, comunidade LGBTQIAPN+ precisam ser os principais beneficiados dessa justiça social, já que são eles e elas que mais sofrem com os problemas do mundo.
3º gol: Defesa Ambiental
Claro que no nosso hat-trick não poderia faltar a defesa do meio ambiente. Afinal de contas, se continuarmos poluindo, os outros dois gols não vão valer de nada.
Por isso, é essencial que a gente pare de poluir, de usar combustíveis fósseis, de queimar nossas florestas, de destruir comunidades indígenas, de usar plástico, de fomentar a mineração. Mas como a economia vai funcionar se a gente parar de minerar, usar petróleo ou agrotóxicos? É difícil, porque consiste em mudar não só um comportamento, mas uma cultura. Mas ou a humanidade faz isso, ou a derrota é certa.
Precisamos parar de produzir tudo em larga escala para que as pessoas comprem sem parar. Os equipamentos e tecnologias precisam parar de estragar após um curto tempo de uso, em função da obsolescência programada. Precisamos ter acesso a produtos e embalagens que podem e devem ser reutilizados.
A reforma agrária é essencial. Não podemos sustentar uma economia do agro que viva de veneno, de destruição, de queimada. É possível a gente continuar a se desenvolver, ganhar dinheiro, exportar e se alimentar por meio da agroecologia, das tecnologias de agrofloresta, da agricultura familiar. É preciso mudar rápido esse jogo, porque ele já está nos acréscimos.
Pronto. Com o hat-trick da nossa craque, o jogo fica em 3 a 3. E foi assim que aconteceu na final da Mercosul. Romário, que à época era um dos principais jogadores do mundo, fez 3 gols e empatou para o Vasco. Só que o jogo ainda não havia terminado.
Aqui a história é parecida. O hat-trick é essencial. Mas para vencer o jogo, é preciso que a economia redistributiva, a justiça social e a defesa ambiental sejam permanentes.
Além disso, é imprescindível garantir a soberania e a existência dos povos. Atualmente, estamos vivendo guerras que já duram décadas e que têm muito a ver com a luta pela terra, pelo espaço, pela sobrevivência de certas culturas. Enquanto esses conflitos não acabarem, a chance de vencermos o jogo é mínima.
O Vasco venceu a final da Copa Mercosul de 2000 contra o Palmeiras por 4 a 3. Em uma virada histórica, com o hat-trick do Romário, quando tudo parecia estar perdido. A gente também pode vencer, mas é preciso correr, porque já estamos perto dos 45 minutos do segundo tempo.
Idec – O Instituto de Defesa de Consumidores é uma organização de pessoas consumidoras, independente de empresas, partidos e governos, que há 37 anos luta para defender os nossos direitos em diferentes temas e políticas, como as de consumo responsável e sustentável.