Não foram só os problemas logísticos para a COP 30 e a paralisação nas agendas que protagonizaram a Conferência de Bonn, na Alemanha. Já ouviram aquela expressão: quem não tem cão, caça com gato?  Foi mais ou menos assim que as negociações em adaptação caminharam na conferência, que terminou na última quinta-feira, com encaminhamentos importantes para a COP30, que ocorrerá em novembro, aqui no Brasil.

A essa altura, você já deve saber que o Acordo de Paris, firmado em 2015, indicou um caminho para as principais agendas de mitigação, adaptação e perdas e danos. Para cada uma das agendas há um pacote que envolve o cálculo de ambição, o financiamento e a comunicação. Por muito tempo foi priorizado o debate sobre políticas de mitigação (aquelas que tentam reduzir os efeitos da humanidade nas mudanças do clima) . Alguns anos, no entanto, a adaptação ganhou sua vez na fila – algo inevitável, dado o aumento de eventos extremos que obrigaram os países a repensar suas infraestruturas e serviços. 

Temos grandes desafios, pela frente, para implementar a agenda de adaptação na COP30. Mas sendo eu uma jovem negra, friso que o desafio envolve, também, o reconhecimento das pessoas afrodescendentes como grupo prioritário.

Nessas duas últimas semanas, tivemos seis agendas de adaptação sendo debatidas na Conferência de Bonn, e uma delas finalmente foi concluída: o Nairobi Work Programme. As outras agendas estão respirando por aparelhos, exceto uma, na qual apostamos todas as fichas: o nosso gato da vez, o GGA (explico essa sigla mais abaixo).

Bonn terminou com decisões processuais na agenda de Planos Nacionais de Adaptação (NAPs), do Comitê de Adaptação (AC) e do Fundo de Adaptação (AF) por conta do grande elefante que entra nessas salas e não deixa ninguém trabalhar de verdade: o financiamento. Sem qualquer possibilidade de triplicar o financiamento atual ou de implementar a tão esperada NCQG (sigla em inglês para Nova Meta Quantificada Coletiva, valor que será destinado para ações climáticas nos países em desenvolvimento), tudo ficou paralisado. Esses foram os cães que tivemos que abandonar pelo nosso caminho.

Mas nem tudo ficou perdido. Ou nem tudo ficou tão perdido assim. A Meta Global de Adaptação (GGA, na sigla em inglês) nos entregou grandes emoções. Para quem não sabe do que se trata, eu explico aqui. A meta é um compromisso coletivo proposto pelo Grupo Africano de Negociadores em 2013, que foi incluído, dois anos depois, no texto do Acordo de Paris. Ela funciona como uma estrutura unificadora para impulsionar a ação política e o financiamento para a adaptação na mesma escala que já acontece com as medidas de mitigação. Isso implica estabelecer diretrizes e objetivos específicos e mensuráveis para a ação em escala global.

Comparando com a COP29, em Baku, até que estamos bem no caminho da meta para a COP30. A gente viu um desejo compartilhado entre os países avançar no debate para que a agenda não ficasse travada. Isso dá uma certa esperança de que seja possível dar respostas ainda neste ano para um mundo que espera por caminhos de resiliência climática e implementação dos acordos.

Vale recordar aqui, COP por COP, a evolução do debate sobre o GGA. Na COP26, em Glasgow, os países lançaram o programa de trabalho Glasgow-Sharm el-Sheikh sobre a Meta Global de Adaptação. No ano seguinte, em 2022, durante a COP27 em Sharm El-Sheikh, foi desenhado o programa de trabalho. Em 2024, na COP28 em Dubai, as Partes adotaram o Quadro dos Emirados Árabes Unidos para a Resiliência Climática Global, que inclui uma série de metas temáticas e dimensionais para adaptação e resiliência climática. Junto disso, incluíram um programa de trabalho bienal entre os Emirados Árabes Unidos e o Brasil, sobre o desenvolvimento de indicadores para medir o progresso alcançado. 

Na COP29, em Baku, apesar da frustração generalizada, decidiu-se que teríamos uma lista de 100 indicadores do GGA para a edição seguinte, de Belém. Esses indicadores seriam divididos em dez grupos temáticos, como saneamento, agricultura, infraestrutura, saúde, pobreza e herança cultural. Um deles poderia ser, por exemplo, a porcentagem de municípios, num país, que possuem planos de adaptação. Se cada país levantar esse dado, será possível mensurar – e comparar -, de forma bem concreta, como cada um deles tem avançado na corrida contra as mudanças do clima.

Nessas duas semanas de Bonn estivemos focados em resolver essa lista de 100 indicadores. O trabalho dos especialistas transformou mais de 9 mil indicadores em 490, mas ainda há um trabalho árduo para chegar na lista dos 100 principais. O problema é que, até o último dia da Conferência de Bonn, os países não tinham entrado em consenso se tocariam no tema do financiamento, da implementação e, em última medida, dos fatores que nos ajudariam a compreender as necessidades reais de cada país no alcance da ambição. 

Depois de 14 horas ininterruptas de negociações no último dia de conferência, nós tivemos uma decisão sobre o GGA, que mesmo diante do cansaço e desgaste, trouxe resultados consideráveis para garantir a viabilidade da meta global de adaptação. Ou seja, nosso gato cumpriu a missão da caça. 

Adaptação e afrodescendentes

Mas claro, nem tudo é vitória. Foi também nesse mesmo dia que a inclusão de pessoas afrodescendentes foi retirada do texto de forma sumária. Retirada de um parágrafo em que se manteve povos Indígenas, processos participativos, direitos humanos, igualdade de gênero, migrantes, crianças, jovens e pessoas com deficiência. 

Saímos de Bonn com afrodescendentes reconhecidos em textos sobre gênero e transição justa. Mas ainda há um caminho a percorrer para que sejamos incorporados nos textos de adaptação. Levaremos para a COP30 essa esperança de que finalmente a agenda de adaptação possa ser coerente e incluir a população afrodescendente que está historicamente na linha de frente da vulnerabilidade climática e socioambiental (para além da linha de frente histórica, que nos obriga, desde sempre, a resistir às várias tentativas de morte). 

Teremos grandes desafios, pela frente, para manter viva a ambição necessária para implementar a agenda de adaptação. Mas sendo eu uma jovem negra brasileira, acho importante frisar que o desafio envolve, também, o reconhecimento das pessoas afrodescendentes como grupo prioritário. Num mundo tão desigual, não faltarão obstáculos a serem superados por nossos cães e gatos.