Em São Paulo, depois de uma primeira gestão de desprezo e inação, o prefeito Ricardo Nunes reconheceu, finalmente, que as regiões do Jardim Pantanal, Jardim Helena e Jardim Keralux – já alagadas há quase uma semana – existem e precisam de atenção. Ótimo.
E o que sugeriu o prefeito? “Não tem como lutar contra a natureza. Não vejo outra solução a não ser incentivar as pessoas a sair daquele local”. Péssimo: a remoção deve ser a última escolha no leque de políticas de adaptação às mudanças do clima. Nunes esqueceu de mencionar, por exemplo, que muitas soluções já foram prometidas – inclusive por ele -, para depois serem completamente ignoradas.

Localizados no extremo da zona leste de São Paulo, Jardim Pantanal, Jardim Helena e Jardim Keralux começaram a ser ocupados 45 anos atrás. Sempre foram ignorados pelo Poder Público, o que permitiu o adensamento urbano dentro de uma área de proteção ambiental, na várzea do rio Tietê. Resultado: agora, só em Jardim Pantanal, 56 mil famílias correm o risco de ter suas casas desapropriadas – e um local com vida, comércio, mercado, bar, salão de beleza e toda uma história própria corre o risco de virar um bairro-fantasma.
Um editorial publicado nesta semana pelo jornal O Globo dá conta de que o prefeito está certo, afinal, a resolução de um problema tão crônico demandaria um investimento bem alto: “Segundo a prefeitura, o custo de um dique para impedir a água de chegar ao bairro é estimado em R$ 1 bilhão — preço inviável ante as necessidades de um município com Orçamento de R$ 112 bilhões em 2024 para atender a 11,5 milhões de habitantes.” Mas será que o dique é a única solução? Não parece ser, já que a própria prefeitura havia proposto outra solução em 2023, com a construção de um pôlder orçado não em R$ 1 bilhão, mas em R$ 6,5 milhões. A obra deveria ter ficado pronta em setembro daquele mês. Um ano e meio depois, segue parada (mas o valor já foi aumentado para R$ 8,5 milhões).
ACOLHER EM VEZ DE CULPAR
Sou nascida e criada nesta região, minha família está toda lá. Neste momento, grandes amigos lutam para repensar a vida diante das incertezas, com filhos pequenos, casas alagadas, móveis e eletrodomésticos destruídos e uma chuva que não dá trégua. A última resposta do prefeito foi que “não é algo que a gente precisa correr hoje [para resolver]”, já que nenhuma decisão dele ou do governador Tarcísio de Freitas “vai ser possível de acontecer para uma solução até o final de março”. E assim, a vida de pessoas como eu é colocada nesse lugar de pouca urgência, marginalização e vulnerabilidade.
É por isso que falamos tanto de racismo ambiental – porque aqui, nesta região, nada é urgente, tudo é culpa de quem só buscava o direito de morar, e qualquer solução precisa ser cuidadosamente calculada no sentido de não gerar muitos gastos para o erário. Me pergunto se a resposta seria a mesma se as enchentes ocorressem nas zonas ricas da cidade. Mentira, não me pergunto. Eu sei qual seria a resposta.
Situação semelhante ocorre na região metropolitana do Recife, em Pernambuco, onde comunidades da região do Ibura estão completamente alagadas, com grande risco de deslizamento. O prefeito João Campos, tão habituado à comunicação nas redes sociais, está há dias demonstrando como o monitoramento das áreas vulneráveis é feito a partir do Centro de Operações. Bacana, mas para quem corre risco iminente de perder tudo, qual é o direcionamento? Nenhum. Depois de chuvas torrenciais que acumularam mortes nos anos de 2022 e 2023, a gestão de Campos ainda não soube olhar para essas pessoas: especialmente as negras, pobres, periféricas, indígenas e quilombolas, que sempre estiveram marginalizadas em adensamentos urbanos sem infraestrutura adequada.
As situações vividas hoje não são novas para essas comunidades que resistem em suas lutas pela dignidade e pelo direito de habitar a cidade. É necessário que as gestões municipais, estaduais e o governo federal tenham estratégias de acolhimento e de cuidados emergenciais para essas famílias em vez de culpá-las. É necessário reconhecer os esforços das organizações da sociedade civil que realizam planos de gestão territorial para essas regiões, e utilizá-los para a tomada de decisões. E é necessário dar um basta no racismo ambiental, reconhecendo as várias reparações históricas que precisam ser feitas antes de dizer que famílias que vivem há quase 50 anos numa região não poderão mais viver lá.
E que fique claro: não estou dizendo que toda remoção é inadmissível. Mas o deslocamento, não raro, costuma ser feito para outra área de risco, com indenizações vergonhosas e a seção posterior da área para a especulação imobiliária. No caso do Jardim Pantanal, por exemplo, a prefeitura oferece R$ 50 mil de indenização. O que as famílias fazem com isso?
Sou uma jovem negra criada em uma dessas regiões, e sei que existem outras soluções para além de abandonar o local onde seus laços comunitários foram criados. Precisamos fortalecer outras possibilidades, tornando as habitações dignas e os espaços adaptados para a emergência climática. Isso começa quando construímos estratégias e soluções com as comunidades. A população não precisa ser realocada. O discurso do prefeito é que precisa.