A aprovação da reforma tributária no Brasil, com a inclusão de carnes e outros produtos de origem animal na cesta básica com alíquota zero, ocorrida em 2024, foi celebrada por muitos como uma vitória do consumidor. A narrativa de “justiça social” e “acesso à proteína” dominou o debate público, mas, como bem detalha uma reportagem recente do “Joio e o Trigo”, essa decisão não foi um ato de espontaneidade política, e sim resultado de uma intensa e bem-sucedida articulação do lobby da carne.

Investigação conduzida pelo “Joio e o Trigo” e pela Fiquem Sabendo, apoiada pela Proteção Animal Mundial, mostra que a proposta original do governo previa um abatimento de 60% sobre a tributação da carne, mas a pressão da bancada ruralista e da indústria da pecuária reverteu essa posição, garantindo isenção total. Esse é um dado central para entender como o lobby prevaleceu sobre alternativas mais equilibradas.

No Brasil, 75% das emissões de metano vêm da pecuária, indústria que segue com poder sem igual no Congresso

Os dados indicam que houve um esforço coordenado e incisivo da agroindústria para influenciar o processo legislativo. Foram registradas mais de mil reuniões do grupo com o Executivo federal, dezenas de visitas ao Congresso e uma presença constante de lobistas influentes, somadas ao financiamento de campanhas eleitorais.

A isenção fiscal para a carne representa uma decisão política que ignora o custo real e insustentável da produção animal em escala industrial. A ciência mostra que o consumo excessivo de carne está associado a sérios problemas de saúde pública e a indústria da pecuária é um dos maiores vetores de desmatamento, emissão de gases de efeito estufa e uso de recursos hídricos. Ao isentar a carne de impostos, o Estado brasileiro envia a mensagem de que está disposto a subsidiar um setor que contribui significativamente para a crise climática, apesar de suas metas de sustentabilidade.

O Brasil costuma ocupar o quinto lugar no ranking global de emissores de metano. Em 2023, o gás foi responsável por 24% do impacto climático do país, com 21 milhões de toneladas emitidas – 75% delas vindas do setor agropecuário. Segundo um relatório do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa) apresentado pelo Observatório do Clima em outubro de 2022, o Brasil tem potencial para cortar em 36% suas emissões de metano até 2030, superando a meta de 30% do Compromisso Global do Metano. Mas falta vontade política para isso, como mostrou reportagem publicada pelo Imaflora no site da Central da COP.

É importante ressaltar que o consumo de carne não deve ser inacessível. Proteínas animais fazem parte da dieta da população brasileira e o acesso a alimentos deve ser assegurado. O problema está na forma como a isenção foi desenhada, para beneficiar principalmente grandes empresas e sem garantir comida mais barata na mesa de quem mais precisa. Quando parlamentares ruralistas deslocam o foco para um falso dilema, como se a crítica fosse contra a carne em si, encobrem a questão central: quem se beneficia de renúncias fiscais bilionárias?

A decisão de incluir a carne na cesta básica com imposto zero também contradiz a lógica de políticas públicas. Instrumentos como o cashback, que o governo propôs inicialmente, seriam mais eficientes para proteger as famílias de baixa renda, permitindo a elas gastar o dinheiro da forma que melhor lhes atendesse. Essa abordagem seria uma ferramenta de justiça fiscal e social de verdade, ao invés de uma renúncia de arrecadação que, no fim das contas, beneficia mais as grandes empresas do que o consumidor final.

O caso da isenção da carne na reforma tributária é um exemplo didático de como o poder das grandes corporações pode moldar a política pública em detrimento do interesse coletivo. Enquanto a indústria teve acesso privilegiado a gabinetes, o diálogo com a sociedade civil foi mínimo e, em muitos casos, nulo. A vitória do setor da pecuária industrial mostra a fragilidade de um sistema que permite que a influência de poucos se sobreponha às necessidades de muitos, devido ao acesso desproporcional que grandes corporações têm aos mecanismos estatais.

A longo prazo, esse modelo cobra um preço alto: o de uma sociedade menos saudável e um planeta mais fragilizado. (NATÁLIA FIGUEIREDO E MARINA LACÔRTE)