O aquecimento global não espera ninguém. E quem sente isso na pele, todos os dias, são os que historicamente carregam desigualdades nas costas: mulheres, população afrodescendente e povos indígenas. Eles estão na linha de frente da crise climática e, ainda assim, seguem invisíveis nas decisões que moldam nosso futuro.
É a primeira vez na história da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) que os documentos das negociações de Transição Justa e do Plano de Ação de Gênero, ainda em fase de rascunho, saem das salas da SB62, em Bonn, com consenso sobre a menção a afrodescendentes. É como se, pela primeira vez, um time histórico entrasse em campo com os afrodescendentes na linha de frente da partida climática.
É preciso garantir a participação plena de mulheres afrodescendentes, que protegem o meio ambiente, mas seguem fora das decisões
Essa força-tarefa, montada como uma verdadeira estratégia de jogo, contou com a participação de Geledés – Instituto da Mulher Negra, organizações afrodescendentes e o Estado brasileiro. Mesmo que a menção a afrodescendentes tenha sido retirada do documento da Meta Global de Adaptação, é hora de recuperar a posse da bola e reafirmar sua importância para garantir direitos. Em um cenário internacional onde muitos Estados ainda ignoram — ou se recusam a enfrentar — as raízes estruturais do racismo, o Brasil assume um papel estratégico, driblando obstáculos e avançando para marcar um gol de representatividade.
O ponto é claro: políticas climáticas só funcionam de verdade se reconhecerem que raça, gênero e território moldam quem sofre mais e quem consegue resistir melhor. O racismo ambiental aumenta vulnerabilidades e invisibiliza conhecimentos tradicionais, especialmente os das mulheres afrodescendentes. Incorporar dados detalhados por raça, gênero, idade e território é mais do que uma boa prática — é uma questão de justiça e reconhecimento de direitos.
Mulheres afrodescendentes protegem florestas, rios e territórios urbanos e rurais, mas seguem fora das mesas onde se decide o futuro climático. Garantir participação plena, visibilidade e valorização de seus conhecimentos é fundamental. Isso significa integrar raça e gênero em todos os processos da UNFCCC, nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e nos planos nacionais de mitigação e adaptação, e reconhecer que suas vozes são parte do jogo.
Quando se fala em transição justa, não dá para fingir que desigualdades históricas não existem. É preciso adotar políticas antirracistas, acabar com a pobreza energética, valorizar o trabalho informal e reconhecer a economia do cuidado. Só assim a transição não vai deixar ninguém para trás.
E a adaptação climática? Afrodescendentes estão concentrados em zonas de sacrifício: áreas com degradação ambiental severa e impactos climáticos extremos. Políticas que ignoram essas desigualdades são um jogo perdido. É preciso financiar projetos de adaptação de pequena escala, valorizar o conhecimento local, regularizar territórios quilombolas e indígenas e garantir que as comunidades possam permanecer em seus territórios e territórios com garantia de direitos.
A COP30 é o momento de virar o placar, mesmo que seja nos 45 do segundo tempo. Reconhecer explicitamente a presença e o papel de mulheres e pessoas afrodescendentes no Plano de Ação de Gênero, alinhar a transição justa e reforçar políticas de adaptação antirracistas não é detalhe técnico: é a chance de transformar o jogo, garantindo justiça social, racial e de gênero. O futuro climático depende da participação de todos — e da voz de quem sempre esteve na linha de frente. (Mariana Belmont e Thaynah Gutierrez)