A essa altura do campeonato, imagino que você já saiba que pessoas negras e periféricas estão entre as mais afetadas pela crise climática. O motivo principal é a marginalização intencional, direcionada, que as faz morar, muitas vezes, em lugares sem qualquer regramento urbano e infraestrutura adequada, e, por consequência, mais vulneráveis às intempéries do clima. Tendo isso em vista, defendo que a aprovação recente no Senado do Projeto de Lei da Devastação (PL 2159/2021), por 54 votos a 13, e o ataque à ministra Marina Silva escancaram nossa necessidade urgente de combater o racismo ambiental: afinal, menos regras no licenciamento levam a mais violência, seja na forma de invasão de territórios, tragédias ambientais e claro, mortes – sobretudo para a população que já é afetada.
Como uma jovem negra vinculada à tradição religiosa do candomblé, a partir da oralidade educadora das minhas iyalorixás Adriana de Nanã e Marta Celestino, entendi que a gente não deve ter medo de driblar as várias tentativas de morte, inclusive aquelas mortes em vida que a violência institucional nos provoca. Depois de assistir à violência misógina e racista dirigida à grande ministra Marina Silva eu resgatei esse ensinamento e entendi que a força que a Marina sentiu ao se retirar da mesa é justamente o drible certeiro em direção ao propósito ao qual sempre se dedicou e que continuará se dedicando.
A institucionalização do medo e da intimidação na política não é recente. Marina sabe disso, os povos indígenas e quilombolas sabem disso, as populações negras nas periferias urbanas também sabem. Quando me deparei com o sorriso bonito da ministra de mãos dadas com as diversas parlamentares que foram até sua sala reforçar o compromisso de estarem lado a lado, me lembrei que, mesmo no meio da dor e do cansaço de ver o retrocesso passar diante nos nossos olhos, há que se preservar a alegria e o encantamento para que ninguém nos mate em vida.
Tenho vivido pequenos grandes momentos em que conseguimos acertar um chute certeiro rumo ao gol, e esse gol dá algumas possibilidades de vitória que a gente insiste em acreditar, mesmo que cantem aos nossos ouvidos que a derrota é evidente. Um deles aconteceu entre os dias 20 e 21 de maio, bem no mesmo período da votação do PL da Devastação. Esse evento foi o Seminário sobre dados de raça, gênero e clima promovido pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, em parceria com IPEA, Observatório do Clima e mais um conjunto de organizações, movimentos e ministérios. O seminário colocou uma multiplicidade de atores para conversar e traçar o caminho possível para que a gente pudesse construir um plano de trabalho rumo à racialização dos dados climáticos. Mais importante que a produção dos dados em si era ter a garantia de que a política climática pudesse se orientar a partir dessa produção de dados.
O segundo momento em que tive a certeza do chute certeiro foi numa breve conversa com o Babá Egbé Felipe Brito, idealizador da Ocupação Jeholu em São Paulo. Ele me fez conhecer a cartilha Oku Abo Espaço Sagrado: Educação Ambiental para Religiões Afro-brasileiras, produzida por Pai Aderbal Ashogun, que tem capa desenhada por ninguém menos que o mestre Abdias do Nascimento. Essa cartilha é importante porque foi produzida em 2009 por um homem negro, liderança de matriz africana, que já na Eco 92 defendia o papel, o espaço e o protagonismo das religiões de matriz africana na luta socioambiental.
Em 2025, às vésperas da COP, em meio ao acúmulo de retrocessos ambientais, me sinto pisando no chão de casa e nas sabedorias dos mais velhos dos terreiros para relembrar que os nossos passos vêm de longe. Nós sempre estivemos aqui e sempre estaremos, reforçando a vida em detrimento da morte, reinventando mundos possíveis e colocando as mulheres negras potentes no seu lugar: no poder, na tomada de decisões e no direcionamento da agenda climática e ambiental desse país. Há anos, a luta ambientalista tem nosso rosto, nossa cor, nossas trajetórias. O ataque a Marina é um ataque a todas nós. E a força de Marina é também a força nossa.