A próxima semana será crucial para o futuro do financiamento climático global. Entre os dias 6 e 10 de outubro, o Órgão Supervisor da COP que trata do Artigo 6.4 do Acordo de Paris se reunirá em Bonn, na Alemanha, com a missão de definir as regras de uma peça-chave desse novo mercado internacional de carbono: o padrão de permanência. 

Antes de tudo, vale explicar: o Artigo 6.4 é aquele que cria um mecanismo global, centrado na ONU, para as transações de crédito de carbono. Ele teve seu texto final aprovado no ano passado, durante a COP29, no Azerbaijão – e agora atravessa um período de ajuste, para a definição de (importantes) pormenores.

A proposta atual de regras para o Artigo 6.4 introduz exigências que nenhum projeto baseado na natureza será capaz de cumprir

Um desses pormenores diz respeito à possível exclusão de soluções baseadas na natureza, como florestas e manguezais, de um mecanismo que foi criado justamente para fomentar a conservação. Essa exclusão, na prática, também deixaria de fora povos indígenas, comunidades afrodescendentes e populações locais que dependem desses recursos para proteger seus territórios e sustentar seus modos de vida.

Se a proposta que está na mesa prosperar, o resultado será um contrassenso. Países já decidiram, em decisões anteriores da Conferência das Partes, que todos os setores, incluindo a natureza, devem ser elegíveis para o Artigo 6.4. No entanto, a proposta em debate impõe exigências que nenhum projeto poderia cumprir: monitoramento por tempo indefinido de ecossistemas, responsabilidade por perdas de carbono até 100 anos após o fim de um projeto, definição de risco negligenciável sem base técnica ou científica, obrigações de reporte anual infactíveis e penalidades desproporcionais, que vão além do que já foi decidido anteriormente pelos países. 

Essa situação ameaça minar as metas climáticas globais e o potencial de financiamento para países em desenvolvimento, especialmente no Sul Global. Floresta e manguezais não são uma opção, e sim a base estrutural para o cumprimento das metas climáticas – as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) – de alguns desses países. Sem acesso ao financiamento de mercados de carbono, eles terão muito menos condições de cumprir as metas do Acordo de Paris.

Exigências extremas

Houve um consenso inicial de que todos os setores – incluindo florestas, manguezais e outras soluções terrestres – seriam elegíveis para este mercado de carbono. Afinal, sistemas terrestres como florestas e manguezais são vitais por armazenarem grandes quantidades de carbono e oferecem algumas das estratégias mais economicamente eficientes  no combate à crise climática. A natureza é uma aliada essencial, com soluções conhecidas, testadas e disponíveis desde já.

O impacto é também na justiça climática. O Artigo 6.4 do Acordo de Paris deve garantir que o mercado de carbono seja também um instrumento de conservação da biodiversidade, desenvolvimento  e inclusão dos povos indígenas, afrodescendentes e populações tradicionais. Esses grupos desempenham um papel fundamental como guardiões dos ecossistemas mais ricos em carbono do planeta, fundamentais para enfrentar a crise climática. A atual proposta, de fato, lhes excluiria do acesso a recursos, aprofundando as desigualdades. Também limitaria as oportunidades de desenvolvimento sustentável e enfraqueceria a proteção da Amazônia e de outros biomas críticos.

Contudo, a versão atual do projeto de regras metodológicas para o Artigo 6.4 introduz exigências tão extremas que, realisticamente, nenhum projeto baseado na natureza será capaz de cumprir. Essas obrigações  não só contradizem decisões anteriores tomadas pelos países, mas também a ciência e as melhores práticas aceitas em outros mercados de carbono no mundo.

Um dos pontos mais problemáticos é a exigência de monitoramento pós-créditos por tempo indeterminado. Na prática, isso significa que os projetos de florestas, manguezais e outros baseados na natureza seriam obrigados a monitorar as áreas abrangidas indefinidamente, mesmo após todos os créditos terem sido emitidos. Outro empecilho é o prazo de um século após o período em que o projeto gera créditos de carbono para compensar quaisquer perdas de carbono (reversões) ocorridas no período. Essa responsabilidade perpétua por reversões ignora o próprio ciclo da natureza, que pode perder e capturar carbono à medida que as espécies vegetais definham e brotam.  

Por fim, a proposta impõe obrigações de reporte e penalidades que criam um sistema extremamente oneroso e irrealista. Com essas regras, há uma extrapolação do que já foi decidido anteriormente pelos países, o que pode gerar uma perda de confiança e credibilidade no mecanismo.  

Soluções realistas

Mas há soluções realistas que permitem conciliar integridade ambiental com viabilidade prática — duas condições indispensáveis para que o Artigo 6.4 funcione de verdade. Uma carta assinada por organizações da sociedade civil e especialistas internacionais, enviada no fim de setembro ao Órgão Supervisor, propõe alternativas técnicas já testadas em outros mercados. 

Entre elas estão o monitoramento por períodos finitos em vez da vigilância indefinida; o uso de reservas (buffer pools), fundos de garantia e seguros, instrumentos eficazes para lidar com perdas inesperadas de carbono; e a transferência de responsabilidade de monitoramento a terceiros com capacidade técnica, garantindo continuidade sem sobrecarregar desenvolvedores de projetos e comunidades locais.

As reuniões do Órgão Supervisor em Bonn, de 6 a 10 de outubro, representam a primeira etapa para a conclusão dessas regras. Nesse encontro, o Órgão Supervisor terá a oportunidade de rejeitar a versão atual e solicitar ao Painel de Especialistas Metodológicos que apresente uma revisão viável do padrão de permanência, junto com outros padrões correlacionados, como a ferramenta de avaliação de riscos e as medidas alternativas para gestão de riscos.

A segunda etapa será em novembro, durante a COP30. A presidência brasileira, que sediará o encontro em Belém do Pará, tem a responsabilidade de liderar uma articulação política que apresente orientações precisas ao órgão supervisor do Artigo 6.4. As regras devem garantir tanto a integridade ambiental quanto a viabilidade econômica dos projetos de florestas e manguezais, assegurando que a natureza permaneça totalmente elegível.

Não podemos permitir que a burocracia impeça o fluxo de financiamento para as soluções climáticas mais importantes do planeta. É urgente que os negociadores em Bonn e na COP30 atuem para cumprir a promessa do Acordo de Paris: financiar a natureza para salvar o clima. O que se decidir agora, em Bonn, influenciará o legado da Conferência em Belém.