O carnaval passou, mas o refrão da famosa marchinha criada por Haroldo Lobo e Nássara, em 1941, segue onipresente: “Alah-la-ô, ô ô ô ô ô ô! Mas que calor, ô ô ô ô ô ô!” Na época em que foi composta a música, oito décadas atrás, tamanha quentura só parecia possível na imensidão de areia do deserto do Saara. Mas eis que as mudanças climáticas em curso neste primeiro quarto do século 21 vêm provocando temperaturas e sensações térmicas desérticas, durante vários dias seguidos, em diversas partes do planeta, incluindo grandes cidades brasileiras. Quaraí, no Rio Grande do Sul, registrou 43,8°C neste primeiro semestre de 2025. O Rio de Janeiro, 44°C. A sensação térmica chegou a absurdos 50°C.

Os meteorologistas definem como “anomalias de temperatura” a diferença entre a temperatura observada e a temperatura de referência, como, por exemplo, a média histórica em dada região. Ondas de calor são anomalias nas quais se registram temperaturas de 5°C ou mais acima da média durante pelo menos cinco dias consecutivos. 

No jogo entre a humanidade e a emergência climática, dispomos de um craque incontestável: a árvore

De acordo com análises recentes realizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), considerando o período entre 1961 e 2020, a ocorrência de ondas de calor no Brasil saltou de sete para 32 por ano, com maior incremento na segunda metade do período estudado – ou seja, nos últimos 30 anos. O mesmo estudo demonstrou também que a média de dias seguidos sem chuva cresceu de 80 para 100. A combinação de temperaturas elevadas, baixa umidade e longas estiagens não é suficiente para transformar nossas cidades em desertos, mas representam um dos maiores desafios para a resiliência climática das áreas urbanas do país – junto com as tempestades de alta intensidade..

Felizmente, dispomos de conhecimento e tecnologias que, se  implementados, tornariam a infraestrutura e, principalmente, as populações urbanas muito mais preparadas e protegidas para lidar com o novo normal climático que já se impõe. São inúmeras as “soluções baseadas na natureza” que deveriam estar sendo adotadas por todos os municípios brasileiros, especialmente os mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos. Entretanto, são raríssimos os exemplos de prefeituras investindo em prevenção e adaptação para reduzir os riscos e mitigar as consequências das ondas de calor e das chuvas extremas.

A manutenção e a criação de áreas verdes urbanas, a implantação de jardins de chuva (pequenas áreas com vegetação inseridas entre a pavimentação urbana para absorver e infiltrar as águas das chuvas), o reflorestamento de encostas, a renaturalização de córregos e rios e a intensificação da arborização das ruas e praças são algumas das soluções disponíveis  com efeitos comprovados. Muitas delas exigem investimentos relativamente modestos se comparados a outras intervenções e, principalmente, com os elevadíssimos custos de reparação e reconstrução após tragédias climáticas –  sem falar nas irreparáveis perdas humanas.

CONSULTA PÚBLICA

Recentemente, o Governo Federal anunciou o Plano Nacional de Arborização Urbana (PlaNAU). Entre março e junho de 2025, prefeituras, profissionais e a sociedade em geral serão mobilizado para a elaboração das bases do plano. Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o propósito do PlaNAU é elevar a presença de vegetação nas cidades, garantindo melhores condições ambientais, climáticas e de qualidade de vida para a população. O objetivo é melhorar a qualidade do ar, a regulação térmica e a gestão das águas pluviais. Para julho, está prevista uma consulta pública online para ampliar a oportunidade de participação social.

É fundamental e urgente que essa iniciativa resulte em efeitos práticos. Até porque o Brasil, que sediará a COP na Amazônia, tem 87% da sua população vivendo em áreas urbanas, segundo dados do IBGE. Metade da população brasileira está concentrada em 30 regiões metropolitanas, regiões integradas de desenvolvimento ou aglomerações urbanas. No jogo da adaptação e resiliência climática para as cidades estamos perdendo de 7 a 1. Mesmo entre municípios que possuem algum planejamento voltado à resiliência climática, pouquíssimos estão de fato implementando as ações planejadas por servidores, pesquisadores e especialistas.

O DESERTO CARIOCA

A Cidade do Rio de Janeiro é um ótimo exemplo da dissonância entre teoria e prática. A prefeitura conta com ótimos instrumentos de planejamento, elaborados com base em informações robustas e com propostas assertivas – dentre os quais vale destacar o Plano de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA), o Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU) e o Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática (PDS). No entanto, as decisões práticas do dia a dia na gestão municipal seguem na contramão das orientações e recomendações preconizadas. O número de autorizações para supressão de árvores continua crescendo, as licenças para empreendimentos que aumentam a impermeabilização do solo dispararam, e o PDAU segue engavetado, classificado como “desatualizado”, apesar de ter menos de 10 anos e nunca ter sido implementado.

Desde 2021, a responsabilidade pelo licenciamento ambiental municipal foi transferida para a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Econômico. O que poderia indicar a almejada sinergia e equilíbrio entre desenvolvimento econômico, meio ambiente e resiliência climática revelou-se, na prática, apenas o velho truque de deixar a chave do galinheiro com as raposas. Em 2022, seguindo a tendência inaugurada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o termo “Clima” foi incorporado ao nome da Secretaria de Meio Ambiente da Cidade – que hoje atende por Secretaria Municipal do Ambiente e Clima. No entanto, até hoje não há clareza sobre as implicações desse “avanço” nas políticas públicas e nas decisões relacionadas à resiliência climática da cidade.

E eis que, ao mesmo tempo em que enfrenta sucessivas ondas de calor antes, durante e depois do carnaval, a sociedade carioca precisa lidar com mais uma peleja: proteger o Jardim de Alah, um parque público que divide Leblon e Ipanema. Após anos de abandono pelo poder público, a prefeitura agora acena com a solução milagrosa: uma parceria público-privada que, de acordo com o projeto apresentado, resultará em mais impermeabilização, mais pavimentação e menos, bem menos árvores. O deserto do Saara da marchinha segue cada vez mais atual.