Representantes do nosso moderno agronegócio andam #xatiados por causa de um número. Eles dizem que é falsa a afirmação, feita por ambientalistas, de que a atividade agropecuária é responsável por 75% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil. O setor, afirmam, é vítima e não vilão da crise do clima, portanto, precisa receber dinheiro para adaptação e não ser “punido” com medidas de corte de emissões. Há alguma justiça na reclamação? Chamamos o VAR para tirar a teima.
Primeiro vamos entender de onde os ambientalistas tiraram o número. De acordo com o SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima, o Brasil emitiu, em 2022, 2,3 bilhões de toneladas brutas de gases de efeito estufa. Desse total, o setor agropecuário emitiu 617 milhões de toneladas (27%), e o setor de mudança de uso da terra (basicamente desmatamento), 1,1 bilhão (48%). Ergo, 75% das emissões são atribuíveis à atividade agropecuária. O SEEG existe há 13 anos e há pelo menos uma década publica essa atribuição.
Quando se olha a emissão líquida, que é como o governo reporta os dados (descontando supostas remoções de carbono feitas por florestas em áreas protegidas), a situação da agropecuária fica melhor, mas não muito: as mesmas 617 milhões de toneladas de emissão direta da agropecuária, mas “apenas” 489 milhões de toneladas emitidas por desmatamento (quase duas vezes a emissão anual dos Emirados Árabes). Portanto, a atividade agropecuária responde por 65% do 1,7 bilhão de toneladas de gás carbônico equivalente emitido pelo Brasil.
A fonte é fidedigna? Sim. O SEEG tem metodologia aberta, publicada em revista internacional indexada, de alto impacto e com revisão por pares. Quatro estados brasileiros utilizam o sistema do OC como fonte dos próprios inventários de emissões, inclusive uma das maiores potências agrícolas do país, São Paulo.
O problema é que o agronegócio não quer assumir para si a conta do desmatamento. Segundo eles, produtor rural não desmata – isso é coisa de “bandido”, grileiro, assentado, inca venusiano, qualquer outro. Será mesmo?
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, em 2022 50% do desmatamento na Amazônia foi feito em áreas registradas no Cadastro Ambiental Rural, o CAR. Desse total, 18% estava em terra privada (fazendas) e o restante sobreposto a áreas protegidas (6%), assentamentos (10%) ou terras públicas não destinadas (15%) – ou seja, com indício de grilagem. Da metade sem CAR, 21% está em assentamento, 14% em áreas não-destinadas, 6% em unidades de conservação, 2% em terras indígenas e 7% em áreas sem informação. Somando os desmatamentos com CAR fora de áreas privadas aos desmatamentos sem CAR em glebas ou em áreas sem informação, tem-se que a bandidagem responde por 52% de toda a derrubada na Amazônia. Ou seja, com muito boa vontade, dá para concordar que produtores rurais respondem por pouco menos de um quinto do desmatamento – portanto, não são os principais culpados.
Mas a leitora sagaz a esta altura já detectou um furo nesse raciocínio. Para que mesmo, ela pergunta, os bandidos desmatam florestas? Pra fazer shopping center? Pátio de estacionamento? Não: a Amazônia é derrubada para dar lugar a extensas plantações de capim. Dados recém-publicados pelo consórcio MapBiomas mostraram que, em 39 anos, de 1985 a 2023, a área de pasto na Amazônia saltou mais de 360%, de 13 milhões para 59 milhões de hectares. Mais de 90% de tudo o que se derruba na floresta dá lugar a pasto.
Como bom capitalista, o grileiro precisa fazer dinheiro com sua atividade, que é especular com a terra que ele roubou do patrimônio público ao invadir, desmatar e queimar. Para isso, evidentemente – e vale para qualquer produto de roubo –, é preciso haver receptadores na outra ponta.
Na maioria das vezes, quem adquire as terras desmatadas pelos grileiros são pecuaristas, para criar boi e produzir carne. É difícil saber exatamente em que proporção, mas dá para fazer um experimento mental: se não é um criador de gado que compra, aquela terra desmatada com capim vai acabar virando floresta novamente, já que não foi convertida em nenhuma atividade produtiva. O grileiro desmatou, queimou, plantou pasto, vendeu a algum otário que por alguma razão gosta de comprar terra arrasada só para ver a floresta crescer de novo nela; nosso amigo pecuarista é inocente.
Felizmente temos imagens de satélite que nos permitem avaliar se é esse o caso. O MapBiomas mostra o que aconteceu nos últimos 39 anos com cada quadradinho de 30 m x 30 m da Amazônia em termos de cobertura e uso do solo. Ele mostra que a área de floresta convertida para agropecuária de 1985 a 2023 foi de 53 milhões de hectares; já a área de agropecuária que voltou a ser floresta foi 2 milhões de hectares, 4% desse total. Ou seja, em sua grande maioria, o que é cortado para virar pasto permanece como pasto.
O agro pode alegar que não liga a motosserra. Mas, ao adquirir e usar as terras ilegalmente desmatadas, atua como receptador de produto roubado. No Código Penal brasileiro, receptação é crime – experimente comprar um carro roubado e explicar ao policial que você não tem culpa. No tribunal do clima, as emissões do desmatamento pertencem, sim, ao agro.
Aliás, é curioso que o mesmo setor econômico que defende que o carbono emitido pela produção agropecuária brasileira seja computado na conta dos países consumidores das nossas commodities rejeite assumir o carbono do desmatamento, visto que é ele o “consumidor” final das terras desmatadas.
O VAR é inequívoco: é pênalti. E a atividade agropecuária responde por 75% das emissões brutas e 65% das emissões líquidas do Brasil.