No último sábado (15), foi exibido na Casa Ninja Amazônia, em Belém (Pará), o documentário “Pau D’Arco”, dirigido pela jornalista Ana Aranha, que conta a história do massacre ocorrido no município paraense de mesmo nome, na fazenda Santa Lúcia, em 2017. Na ocasião, dez trabalhadores rurais sem terra foram assassinados por policiais civis e militares do estado do Pará. Fernando dos Santos Araújo, uma das testemunhas do caso, também foi assassinado, após anos de ameaças, em fevereiro de 2021.
Este foi um dos casos que integraram o Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio, realizado nos dias 13 e 14 de novembro em Belém, como parte da programação do Movimento Organizações de Base pelo Clima – também conhecido como COP do Povo. Ao longo desses dias, 21 casos previamente programados de crimes contra o meio ambiente e contra seus defensores (e mais três casos especiais incorporados no último dia) foram ouvidos e julgados por um tribunal composto de juízes populares.
Leitura das sentenças, com os juízes ao fundo: 21 casos julgados simbolicamente ao longo de dois dias. FOTO: CLÁUDIA PEREIRA
Os juízes dos casos foram escolhidos pela liderança moral. Eram pessoas como o cacique Ramon Tupinambá, da Aldeia Tukum, da Bahia; o professor universitário quilombola Aiala Colares de Oliveira Couto, da liderança Itahu Ka’apor; o historiador Luiz Felipe de Alencastro, da Comissão Arns; a pesquisadora Marcela Vecchione, da UFPA; ou Eliete Paraguassu, liderança marisqueira, pescadora e quilombola da comunidade de Ilha de Maré, da Bahia. Isso deu a tônica do que ocorreria durante os dois dias do Tribunal: longe de considerar apenas os códigos legais, tratava-se de garantir uma escuta e um julgamento pautados no reconhecimento da relação de ancestralidade com o território.
Além do caso “Fernando dos Santos Araújo – testemunha do massacre de Pau D’Arco”, outras violações a defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, dentro e fora do Brasil, foram denunciadas, como o caso de Julia Chuñil Catricura, liderança Mapuche chilena da região de Los Ríos que, na luta pela proteção da Reserva Cora, desapareceu em 2024. Na oitiva do caso, seu filho relatou que, no presente momento, ele e sua irmã estão sendo acusados pelo desaparecimento da própria mãe.
Outros casos se referiam a grandes empreendimentos que ameaçam o meio ambiente e a vida de comunidades tradicionais. Tal é o caso da construção da hidrovia Araguaia-Tocantins, canal de navegação na região dos pedrais do rio Tocantins, que pode levar à destruição do Pedral do Lourenção (considerado território sagrado e morada de encantados). A defesa do Pedral também foi bandeira da Marcha Global pelo Clima, ocorrida na manhã do último dia 15 de novembro.
A determinação pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) de dragagem no Rio Tapajós em “pontos críticos”, por conta das secas de 2023 e 2024, também foi alvo de denúncia. Sem estudo de impacto ambiental ou dos componentes indígenas e quilombolas atingidos, e sem consulta prévia, livre e informada, a dragagem já mudou a coloração da água e danificou a flora e a fauna aquáticas. Os procuradores populares encarregados desse caso destacaram que o objetivo também é integrar o Tapajós ao Corredor Arco Norte, projeto de escoamento de produção agrícola e de minérios, usando os rios como corredores logísticos.
Ao apresentar o caso do Corredor Logístico do Rio Madeira, foi destacada a conexão entre os terminais intermodais, que faz com que dragagem de rios, construção de hidrovias, de portos e de ferrovias sejam parte de um projeto maior de transporte de commodities (o projeto de ferrovia conhecido como Ferrogrão foi outro dos casos analisados no Tribunal). Josep Iborra, membro da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia e um dos procuradores populares do caso do Rio Madeira, denunciou que se trata do primeiro caso de privatização de uma hidrovia, e afirmou que só o seu anúncio já acelera a criação de novos portos. “Nós queremos ter o direito de dizer não”, defendeu.
A partir do início da tarde do dia 14 de novembro, os juízes se reuniram para elaborar a sentença coletiva – sem valor legal, mas com impacto simbólico. Não havia uma presidência formal, mas a Iyalasé Yashodhan Abya Yala foi escolhida como porta-voz do grupo. Às 17:18, ela deu início à leitura da sentença, que partiu de uma saudação aos “ancestrais de todos os povos aqui reunidos em busca de justiça e reparação”. O Tribunal reconheceu a existência de “graves violações de direitos humanos e da natureza e de seus modos de ser e de existir”, além do fato de que está em curso uma guerra entre os modos de vida.
Com base nisso, foram condenados pelo tribunal os Estados nacionais do Brasil, Bangladesh, Chile, Colômbia, Bolívia, Guiné Bissau e Israel, “pelas violações, decorrentes de um projeto colonial, racista, patriarcal, pautado na patrimonialização da natureza”. Foram condenadas também mais de oitocentas empresas privadas e agentes do sistema financeiro público, privado e multilateral. Além das condenações, uma longa lista de reparações foi exigida.
Após a leitura da sentença, a Iyalasé Yashodhan declarou: “em nome daquilo que eu sou e represento, todos os réus serão queimados na fogueira da esperança e do amor”, ao que se seguiu a queima do papel com a lista de réus.
O encerramento desse tribunal promete ser não um fim, mas um início. Os juízes anunciaram que, a partir de agora, ele foi transformado em um Tribunal Autônomo e Permanente dos Povos contra o Ecogenocídio, e que persistirá no acompanhamento de casos no mundo inteiro e na busca de justiça e reparação.