Nos últimos anos, as cidades têm sido intensamente afetadas pelos eventos decorrentes da crise climática. Enchentes que isolam bairros, secas que interrompem colheitas e ondas de calor que ameaçam a saúde pública mostram a urgência de respostas locais. Governos urbanos têm um enorme potencial para se tornarem protagonistas na mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Entre as estratégias pouco exploradas, a alimentação se destaca como eixo central para enfrentar esses desafios.
A forma como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos está ligada à crise climática. Globalmente, sistemas alimentares respondem por mais de um terço das emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, a agropecuária e o uso da terra representam as maiores fontes de emissões. Ao mesmo tempo, eventos extremos elevam preços e reduzem a disponibilidade de alimentos frescos, afetando a segurança alimentar urbana, especialmente nas periferias.

Esquema tático de fortalecer os sistemas alimentares locais é uma das formas mais eficazes de construir resiliência climática
A pandemia da Covid-19 e o agravamento dos desastres climáticos demonstraram como os sistemas alimentares estão vulneráveis. Um estudo de 2024, que analisou onze cidades, revelou que os choques mais severos ocorreram nos estágios de produção e consumo: agricultores perderam renda, consumidores enfrentaram inflação e cadeias logísticas colapsaram.
Isso reforça a necessidade de respostas locais, mais ágeis do que políticas nacionais centralizadas. Hortas urbanas, cozinhas comunitárias e circuitos curtos de comercialização mostraram eficácia em períodos crises, ao reduzir emissões e fortalecer a segurança alimentar. Cidades que integram políticas de alimentação e clima constroem resiliência sistêmica, ou seja, a capacidade de prevenir, absorver, adaptar e transformar seus sistemas alimentares diante de crises sucessivas. Essa abordagem está em linha com o conceito de City Region Food Systems (CRFS), proposto pela FAO, a Organização para Alimentação e Agricultura da ONU, que valoriza a conexão entre centros urbanos e suas áreas rurais próximas, articulando produção, distribuição e consumo de alimentos.
Segundo estudo da FAO, as políticas alimentares devem ser estruturadas com base em cinco capacidades fundamentais para promover a resiliência dos sistemas:
1. Prevenção: inclui diversificação de cultivos, fortalecimento da base produtiva local e criação de estoques reguladores para garantir o abastecimento em momentos críticos;
2. Antecipação: engloba ações como monitoramento climático, elaboração de protocolos de emergência alimentar e planejamento prévio de respostas a riscos previsíveis;
3. Absorção: representada por estruturas como cozinhas que oferecem refeições gratuitas e bancos de alimentos que permitem amortecer os impactos imediatos de crises sobre a população;
4. Adaptação: exige a reconfiguração contínua das políticas públicas, como as compras governamentais adaptadas à sazonalidade, ao contexto local e à diversidade da agricultura familiar;
5. Transformação: transição para modelos agroecológicos, com a reforma das infraestruturas de abastecimento e a implementação de novas formas de governança alimentar inclusiva.
A força dos casos locais
Alguns exemplos brasileiros que mostram como essas estratégias podem ser aplicadas estão em Porto Alegre (RS), onde funcionam os Pontos Populares de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PPSSAN). Durante as enchentes de 2024, que deixaram a cidade ilhada por vários dias, cozinhas solidárias atuantes no município tornaram-se pontos estratégicos de apoio nutricional, logístico e emocional para a população atingida. Uma única unidade chegou a preparar mais de 117 mil refeições em poucas semanas, com insumos oriundos da agricultura familiar e de solidariedade popular. Reconhecendo sua importância, a Prefeitura e o Governo do Estado passaram a integrá-las à política pública por meio da criação dos PPSSAN. Durante eventos extremos, a cidade adapta rotas de distribuição de alimentos e reativa estoques descentralizados para garantir comida de qualidade mesmo em cenários de crise.
Já Belo Horizonte (MG) tem uma política de Segurança Alimentar e Nutricional bastante consolidada, com uma perspectiva da agroecologia que busca integrar hortas urbanas com captação de água da chuva, feiras agroecológicas, além de um sistema de equipamentos públicos que conta com restaurantes populares e bancos de alimentos. O município incluiu o tema das mudanças climáticas em sua Política de Segurança Alimentar e Nutricional, buscando garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas capazes de resistir às mudanças climáticas.
Recife (PE) aposta na agroecologia urbana e na alimentação escolar com base em produtos frescos, minimamente processados e de origem local. A cidade criou uma Secretaria Executiva de Agricultura Urbana, que coordena políticas voltadas à produção de alimentos em zonas urbanas, inclusive com práticas de captação de água da chuva e reaproveitamento de resíduos orgânicos. Além de reduzir emissões associadas ao transporte e ao consumo de ultraprocessados, essas ações contribuem para o enfrentamento dos desafios relacionados à gestão hídrica e à vulnerabilidade socioambiental nas periferias urbanas.
E em Santarém (PA) todas as escolas da rede municipal são abastecidas por produtos frescos da agricultura familiar através do programa de alimentação escolar. As compras são centralizadas pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED), que elabora os cardápios em diálogo com nutricionistas e organiza a logística de abastecimento em três regiões distintas: urbana, planalto (acessível por estrada) e ribeirinha (onde as escolas só podem ser alcançadas por via fluvial). Enquanto os alimentos não perecíveis são adquiridos por meio de licitação pública convencional, os produtos frescos são entregues diretamente pelos agricultores às escolas. Esse modelo, além de dinamizar a economia local e valorizar práticas agroecológicas, contribui para a adaptação climática encurtando cadeias de abastecimento, diversificando a produção e fomentando a produção local.
Apesar desses avanços, muitas ações ainda são reativas, focadas em absorver impactos imediatos, como cestas básicas e subsídios que não transformam estruturas de vulnerabilidade. Como observa o relatório da FAO, “os sistemas alimentares frequentemente voltam ao funcionamento anterior ao choque, perdendo a oportunidade de promover transformações profundas”.
Ainda há barreiras recorrentes que limitam a transformação dos sistemas alimentares, como a falta de coordenação entre políticas nacionais e locais, a baixa inclusão de atores comunitários nos processos de planejamento, a escassez de financiamento voltado à infraestrutura alimentar e a ausência de indicadores claros para medir a transformação e a resiliência. Apesar desses desafios, iniciativas coletivas lideradas por comunidades, organizações da sociedade civil e governos locais têm demonstrado maior capacidade de promover mudanças duradouras, especialmente quando articuladas com estratégias de governança participativa e redes intermunicipais.
As políticas alimentares municipais podem não apenas garantir comida no prato, mas cuidar das águas, do solo, da biodiversidade, da memória alimentar, do território e das relações. Fortalecer os sistemas alimentares locais é uma das formas mais eficazes de construir resiliência climática com justiça social. Mas isso exige uma mudança de perspectiva.