O exemplo é pequeno, mas ilustrativo. No final de 2020, uma junta formada por cinco peritos do Inea, o Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro, negou a licença a um empreendimento que transformaria uma área de floresta urbana, na capital fluminense, num autódromo. Não foi tarefa fácil, dado que a iniciativa contava com apoio dos governos municipal, estadual e federal, além do lobby da Fórmula 1. A Floresta do Camboatá só permaneceu de pé, e ainda permanece, porque estava resguardada pela Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981 – política essa que pode ser depauperada, ainda nesta semana, com a provável aprovação de um projeto de lei sendo votado hoje no Senado.
O tal PL, de número 2159/2021, escangalha com todo e qualquer mecanismo de licenciamento ambiental, substituindo um regramento que procura ser seguro por uma lógica de faça-você-mesmo. “A grande maioria dos processos se transformará em um apertar de botão pelo empreendedor, que estará dispensado de entregar qualquer estudo ambiental prévio e de apresentar alternativas técnicas e locacionais”, explica a advogada Suely Araújo, ex-presidente do Ibama que hoje integra o Observatório do Clima. “Estamos diante do pior retrocesso de nossa legislação ambiental nas últimas quatro décadas ou mais.”

Se aprovado, o PL permitirá que empreendimentos de médio impacto - a barragem de rejeitos de Brumadinho era um deles - passem a ser permitidos por um mecanismo de autolicenciamento (FOTO FELIPE WERNECK)
Hoje, para ser aprovado, um empreendimento precisa produzir uma série de estudos e relatórios para justificar o seu impacto ambiental. O processo é bancado pelo próprio empreendedor, para depois ser submetido à consulta pública e à avaliação de um órgão competente, o que pode durar anos, e consumir alguns milhões de reais – tempo e dinheiro depositados a fundo perdido, quando a licença não é aprovada. Com o PL 2159, empreendimentos que causam grande impacto – uma transposição, como a do rio São Francisco – ainda precisarão dos estudos. Mas empreendimentos de médio impacto – a barragem de rejeitos de Brumadinho era um deles – passarão a ser permitidos por um mecanismo de autolicenciamento, em que a pessoa interessada preenche um documento, envia ao governo e ponto final. Vai-se o revés, ficam os dividendos.
Daí porque o PL 2159 é um sucesso de público e crítica pelas casas parlamentares por onde passa. Em 2021, o parecer do deputado federal Neri Geller (PP-MT) foi aprovado no plenário da Câmara, sob influência da bancada ruralista e do lobby das indústrias, por 300 votos a 122 (lá, ele atendia pelo número de 3729/2004). Agora, já é dado como certo que o novo parecer, de autoria dos senadores Tereza Cristina (PP-MS) e Confúcio Moura (MDB-RO), será aprovado, entre hoje e amanhã, na comissão de Reforma Agrária do Senado (nesta manhã, já foi aprovado na de Meio Ambiente). O resultado está de tal forma assegurado que o texto também já está pautado para ser apreciado no plenário do Senado, na própria quarta-feira.
O PL 2159/2021 tem pelo menos quatro pontos considerados graves – e inconstitucionais – pelos ambientalistas. O primeiro diz respeito ao uso amplo e quase irrestrito da Licença por Adesão e Compromisso – o tal do autolicenciamento – que hoje só é permitido para empreendimentos de pequeno porte. O segundo trata da dispensa do licenciamento ambiental para certas atividades agropecuárias. O terceiro ponto é o esvaziamento de órgãos como Funai, Ibama e Iphan, cujas opiniões e análises deixariam de ser obrigatórias e vinculativas no processo de licenciamento ambiental. O quarto, a falta de resguardo aos recursos hídricos do país. O Observatório do Clima produziu uma nota técnica destrinchando esses e outros pontos graves.
Há ainda um outro ponto que merece ser esmiuçado: o PL acaba com a necessidade de se fazer uma nova licença ambiental para a “manutenção ou melhoramento de infraestrutura em instalações preexistentes”. O problema é que melhoramento de equipamentos preexistentes é uma categoria vaga, que pode valer para tudo, inclusive para a pavimentação de uma estrada de terra na área mais preservada da Amazônia (o exemplo é real: trata-se da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, cujo asfaltamento pode ser fatal para qualquer pretensão do Brasil de ainda ser uma liderança ambiental).
DEUS-DARÁ
Em termos metafóricos, o que o PL 2159 propõe equivale a um engenheiro construindo uma ponte sem submeter os cálculos a um órgão responsável; ou a um motorista tirando licença de condutor sem passar pelo teste de aptidão. Em termos práticos, a aprovação do texto pode resultar em descontrole ambiental (aumento do desmatamento), acentuação da pobreza (exposição de pessoas a rejeitos químicos) e, claro, em mortes.
Em 2021, quando o PL 2159 chegou ao Senado, o Instituto Socioambiental publicou uma nota técnica alertando para o efeito que uma eventual aprovação teria sobre empreendimentos minerários no estado de Minas Gerais, que já protagonizou os desastres de Mariana e Brumadinho, por falhas na fiscalização ambiental (por aí vê-se que a lei atual deveria na verdade ser reforçada). Concluiu que apenas 14,4% dos empreendimentos de mineração continuariam a demandar estudos aprofundados. Em outras palavras: 85,6% dos processos que hoje precisam de licença prévia de algum órgão ambiental passariam a ser feitos ao Deus-dará. Agora multiplique por todo o país, inclua todo tipo de atividade econômica, e veja onde o resultado pode chegar – e isso num ano em que o Brasil servirá de sede a uma edição da COP, a Conferência das Partes da ONU que discute formas de combater a degradação ambiental e as mudanças no clima.
Hoje pela manhã, durante a votação do PL na Comissão de Meio Ambiente do Senado, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) explicou que já existe decisão proferida, no Supremo Tribunal Federal, para ao menos quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tratam de casos correlatos ao que propõe o texto do PL 2159. “Fatalmente nós teremos várias outras ações que poderão derrubar esse projeto de lei que estamos a aprovar, porque ele é um projeto que tem vício de constitucionalidade”, declarou, lembrando que a aprovação pode abrir caminho para a repetição de tragédias como a de Brumadinho. “Em função de um lucro, poderemos ceifar novas vidas. No caso de Brumadinho, foram 273 pessoas que vieram a óbito.”
Caso seja aprovado, o PL volta para a Câmara, para ajustes mínimos e segue para sanção do presidente Lula.