No último 30 de março, data estabelecida pela ONU para a celebração do Dia Internacional do Resíduo Zero, o secretário-geral António Guterres compartilhou o seguinte comunicado: “O planeta Terra é uma vítima da moda (…). A produção têxtil utiliza milhares de produtos químicos, devora recursos como terra e água e emite gases de efeito estufa, inflamando a crise climática.” Lembrou que a indústria têxtil produz em uma escala muito além da necessária, resultando em toneladas diárias de roupas descartadas: “A cada segundo, o equivalente a um caminhão de lixo cheio de roupas é incinerado ou enviado para aterros sanitários.”
No vídeo, de cerca de dois minutos, Guterres deixou claro que é preciso haver uma mudança drástica na lógica do consumo – uma mudança que envolva consumidores, empresários, governantes e a sociedade civil, de forma a que a moda ainda “possa fazer sentido para as pessoas e para o planeta”. Não poderia ter dito de forma mais clara.

Nas últimas décadas, o destino de mais de 92 milhões de toneladas de roupas foi o Deserto do Atacama, no Chile, onde já é possível ver o acúmulo de peças descartadas em imagens de satélite
É impossível falar de mitigação e adaptação climática sem considerar resíduos, consumo e descarte. Nesse cálculo, a indústria da moda é uma das cabeças de chave no campeonato da poluição, sendo responsável pela emissão de aproximadamente 2,1 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa por ano, ou 4% das emissões globais, segundo o relatório Fashion On Climate da McKinsey & Company. Para piorar, esse número tende a crescer 2,7% ao ano, considerando os atuais padrões de consumo e as projeções populacionais.
Grande parte do setor têxtil é marcada pela baixa durabilidade das peças, consequência direta das tendências criadas pelo ultra fast fashion, um sistema acelerado, descartável e altamente predatório de produção e consumo. Além disso, a reciclagem têxtil é cada vez menor, fruto da produção à base de combustíveis fósseis. Mesmo diante desse quadro, as iniciativas relacionadas à moda dentro da Conferência das Partes ainda são tímidas, com pouca articulação política e baixo comprometimento das empresas do setor.
A regra atual do jogo é criar novas coleções semanalmente, em resposta às tendências rápidas apontadas pelas redes sociais. O resultado é um volume de roupas incompatível com a velocidade de compra, a capacidade humana de produção e o espaço físico das cidades. Exemplo didático desse quadro disfuncional: a Nike deve lançar em breve uma camisa vermelha da seleção brasileira, o que não respeita nenhuma tradição para além da mercadológica.
Como consequência dessa lógica, nas últimas décadas, o destino de mais de 92 milhões de toneladas de roupas foi o Deserto do Atacama, no Chile, onde já é possível ver o acúmulo de peças descartadas em imagens de satélite. Kantamanto, em Gana, recebe semanalmente 15 milhões de peças usadas, das quais 40% são consideradas lixo por não terem utilidade ou condições de venda — gerando uma crise ambiental, de saúde pública e nos meios de subsistência da comunidade.
Esse modelo representa tudo aquilo contra o qual precisamos lutar para evitar os — agora 1,55 — graus de aquecimento global: monoculturas, cadeias produtivas movidas a combustíveis fósseis, consumo guiado por tendências e descarte baseado no colonialismo. De acordo com a pesquisa Crimes da Moda, realizada pela Earthsight, as duas maiores marcas de fast fashion do mundo, H&M e Zara, utilizam algodão ligado a grilagem de terras, desmatamento ilegal, violência, violações de direitos humanos e corrupção no Brasil.
O ciclo é perversamente claro: extrai-se os recursos naturais de países do Sul Global, produz-se nos mercados emergentes, vende-se em massa no Norte Global e, ao fim, remete-se pontas de estoque e peças sem condições de uso em forma de resíduo ao Sul Global novamente. O custo ambiental e social de lidar com esses descartes, claro, fica conosco. Pode isso, Armani?
Para colocar em números: só no último ano fiscal, de 2024, H&M e Zara lucraram, respectivamente, 1,05 e 5,87 bilhões de euros, o equivalente a mais de R$ 45 bilhões somados. Um lucro concentrado em poucas mãos, que representa apenas uma pequena fatia dos mais de R$ 4,5 trilhões que a indústria da moda global movimentou no mesmo período. Uma conta que não fecha — mesmo com tantos dígitos — quando se lembra que, em média, apenas R$ 2 por peça produzida são repassados às costureiras por empresas semelhantes do setor.
Ou seja, o problema da moda é de ordem social e climática, o que reforça a necessidade de taxação das grandes fortunas acumuladas nas mãos de grandes varejistas, da redistribuição de renda e da oportunidade de financiamento da transição energética que queremos e precisamos para ontem. A economia verde precisa ser o novo preto.
A LUTA POR DIREITOS NA INDÚSTRIA DA MODA
Há movimentos que lutam por isso, como o Fashion Revolution, criado em 2013 após a trágica queda do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, polo de produção favorito das grandes marcas globais. O acidente matou mais de 1.100 pessoas e feriu mais de 2.500, escancarando as condições precárias dos trabalhadores que produziam para as grandes marcas do Norte Global.
Desde então, o movimento, que é global e está presente em aproximadamente 70 países, dentre eles o Brasil, passou a articular novas conexões entre moda e impacto socioambiental. Em 2018, durante a COP 24, foi lançada a Carta da Indústria da Moda para Ação Climática, uma iniciativa da UNFCCC para engajar o setor na agenda climática global. Mais de cem empresas — entre elas Adidas, Nike, H&M, Inditex e Burberry — assinaram o documento, comprometendo-se com metas alinhadas ao Acordo de Paris: reduzir em 30% as emissões de GEE até 2030 e alcançar a neutralidade de carbono até 2050.
Mas a evolução do jogo segue fraca: muitas prorrogações, pouca bola no gol. Em uma declaração recente, o secretário executivo da ONU sobre Mudanças Climáticas, Simon Stiell, afirmou que a indústria precisa avançar mais e mais rápido e que mesmo anos após a criação da carta, ainda não é possível confirmar avanços efetivos e o cumprimento das metas estabelecidas para a limitação do aquecimento global.
Neste ano de COP 30 no Brasil, precisamos de um novo modelito. Um rebranding na lógica de consumo da moda que tenha efeito no clima.
Esperamos que a oportunidade de sediar uma Conferência das Partes na Amazônia seja também o início de uma nova fase de comprometimento real e profundo das grandes marcas com seus impactos ambientais.